Meu pai chama-se Nelson João da Silva. É aposentado, mas trabalhava ajudando meu irmão na manutenção de freezers, o que o fazia viajar por todo o estado. Sempre foi uma pessoa muito ativa, independente, comprometido e companheiro de minha mãe que fazia tratamento de saúde. Com os netos, jogava bola e andava de bicicleta com muita alegria.
Em 2012 meu pai, começou a sentir vertigens e para entender o que estava acontecendo, foi ao clínico geral. O primeiro diagnóstico dado a ele dizia que era um problema de labirintite. Devido a não melhora levei-o a uma consulta com um amigo cardiologista. Ele fez os exames solicitados (eletrocardiograma e teste ergométrico), e nenhum deles apresentou alguma alteração. Os exames laboratoriais acusaram colesterol alto, e sua pressão arterial também precisava ser controlada. Teria que tomar remédio para controlar sua pressão, e baixar o colesterol. Deveria iniciar uma mudança radical: sua alimentação teria que mudar, ou teria sérios riscos de vida. Porém, as orientações foram entendidas pelo meu pai como desnecessárias, pois não se sentia doente. Pensando desta forma não realizou a mudança de hábitos alimentares, nem tomou as medicações solicitadas pelo médico. Durante alguns dias tomou os remédios, mas como o médico o orientou a não ingerir bebida alcoólica, achou melhor suspendê-los.
Provocou um atrito comigo e com minha mãe, pois entendemos a gravidade do que poderia vir a acontecer.
Em uma tarde, quando foi levar minha mãe em uma consulta médica, ficou no carro aguardando. Quando ela chegou, estava com a camisa social toda aberta, pálido e suado. Minha mãe levou um susto, pois ele disse a ela que achava que iria morrer ali mesmo, sem que houvesse tempo de alguém aparecer para socorrê-lo. Ela quis ligar para meu irmão vir até aonde estavam, mas ele, teimoso como sempre, não aceitou. Disse que já havia passado e não deixou ela nos contar o que havia acontecido.
Passado algum tempo, numa tarde ele foi me visitar no hospital, pois eu havia realizado uma cirurgia. Nesse dia ele ficou praticamente o dia todo muito nervoso, aguardando notícias. Os vizinhos contam que ele estava muito estranho, mais impaciente do que nunca. Acreditamos que ele ficou muito tenso e que por esta razão no início da noite teve um mal-estar.
Nesta noite ele estava na sala sozinho assistindo televisão, quando veio até o quarto ao lado aonde minha mãe estava. Adentrou rasgando a roupa e caiu sobre ela subitamente, salivando muito, vomitando e pálido. Naquele momento minha mãe observou que sua boca estava torta e que ele fazia um movimento estranho com a perna esquerda, como que tentando tirar a calça. Ela entrou em choque porque achava que ele estava de brincadeira. Só quando percebeu seu rosto todo deformado, entrou em pânico. Como ninguém está preparado para uma situação dessas, ela ficou alguns segundos sem saber como agir. Imagina uma pessoa forte por cima dela: Foi um sufoco! Então conseguiu se levantar e ligou para várias pessoas, até conseguir ajuda. O SAMU foi acionado. No atendimento foi realizada intubação e meu paciente encaminhado ao Hospital Municipal São José. Após o diagnóstico e tratamento inicial foi encaminhado para a UTI do Centro Hospitalar Unimed, onde realizou craniectomia descompressiva. Foram inicialmente 22 dias de TI e posteriormente 21 dias na enfermaria hospitalar, num total de 43 dias. Ele recebeu alta totalmente dependente.
Vocês podem imaginar o que foi trazê-lo pra casa em uma ambulância, como quando se traz um bebê? Nós estávamos cheios de medos e dúvidas, sem saber se daríamos conta dos cuidados…
A primeira tarde em casa, parecia um dia de festa! Todos os filhos, e netos estavam ao seu redor para atendê-lo. Mas nem tudo foi tão fácil, apesar da união familiar. Tivemos que transformar a casa, fazer todas as adaptações necessárias. Cama hospitalar, cadeira de rodas, cadeira de banho, sofá, barras, rampas. Tivemos, principalmente, que transformar nossa maneira de pensar em tudo, focando no seu bem estar. Ninguém constrói uma casa pensando em ficar doente. Ele havia recém mudado para uma casa nova; um sobrado como ele sonhava. E agora como vive um cadeirante numa casa com 22 degraus? Assim foram os primeiros cinco meses: subindo e descendo estes degraus com ele sendo carregado, levando-o a médicos e fisioterapeutas, até decidirmos fazer a troca para o andar térreo aonde eu morava.
Digo sempre que ele é um homem privilegiado pelo tratamento que teve: uma terapeuta ocupacional para nos orientar e fisioterapia três vezes na semana em casa. Porém nada foi fácil, pois ele não reconhecia seu corpo, não percebia que seu lado esquerdo estava paralisado, não ajudava em nada na fisioterapia, confundia tudo que era solicitado, não conseguia identificar as pessoas, nem mesmo a mim ou a minha mãe, pois sua visão também foi afetada. Teve que aprender a virar o rosto para conseguir enxergar. Seu braço esquerdo, e a perna não se movimentavam. Sua voz ficou fraca e rouca; tínhamos que falar com ele bem de perto. Alimentávamos ele na cama, com medo que se afogasse. Já havia perdido 9 quilos depois do derrame. Na cama, ele descobria todo o lado afetado. Era incrível ver uma parte coberta e outra não, mas pra ele estava tudo certo. Começou então uma batalha: ensiná-lo a aprender a comer sozinho e fazer todas as refeições conosco à mesa. Era igual a uma criança que derrama tudo fora do prato e usa babador para não se sujar. Tinha dificuldades também para visualizar a comida; somente o que estava no lado direito do prato ele comia.
Usar fraldas, justo um homem todo vaidoso? O nosso maior medo e cuidado era para não bater a cabeça no local da cirurgia, pois a cranioplastia (recolocação da calota craniana – osso), ainda não havia sido realizada. Sua pele ficou muito sensível e fina. No dia de fazer a barba era uma luta, reclamava de dor o tempo todo. Tivemos que aprender a cuidar de uma pessoa totalmente dependente. Justo ele que nunca teve paciência para esperar, tudo era para ontem. Perdeu a noção de tempo, não sabendo mais o dia, mês e ano.
Para a medicação nas horas certas elaboramos um quadro para que todos falassem a mesma língua e não tivéssemos dúvidas. Também fizemos o mesmo com relação aos horários de alimentação, troca de fraldas, roupa, banho. Se o colocássemos sentado, seu corpo não parava, então envolvíamos ele com lençóis para não cair. Seu pescoço não aguentava a cabeça. Para o banho tínhamos que esperar meu marido chegar, pois só com uma pessoa era impossível. Ele escorregava na cadeira. Imaginem um homem pesado, ensaboado, quem consegue segurar? Mas tínhamos que ter fé. A meta era ao menos uma hora fora da cama, todos os dias. Ele reclamava, mas nós o incentivávamos a não desistir. Aos poucos foi aumentando o período fora da cama até chegar a ficar todo um período, manhã ou tarde. Sempre quando levantávamos ele para fazer a troca de lugar, ele dizia estar tonto. Logo aprendemos a esperar seu tempo e foi ficando mais fácil. Como ele nunca perdeu a fé de que iria voltar a andar, sempre dizia: “Mês que vem vou andar correndo atrás de vocês!” Quando o colocávamos na cadeira de rodas, ele ia escorregando seu corpo para frente, mas para ele estava tudo certo, não tinha noção nenhuma de espaço. Não queria saber de ficar fora da cama; sempre reclamando e pedindo para voltar. Chegamos a tentar colocá-lo em sua cama de casal, mas não funcionou. Ele ia escorregando e se entortando na cama até quase cair. Além disso era mais difícil para os cuidados (trocar as fraldas, roupas e fazer as transferências ).
Aprender a dormir sozinho foi outra dificuldade. Reclamava que sentia muita dor no braço, principalmente no seu ombro.
No meio dessa bagunça que andava nossas vidas, recebemos ligação da clínica aonde teríamos que levá-lo para uma de aplicação de toxina botulínica, pois ele já havia sido avaliado com relação a este tratamento no hospital. No início pensamos em não levar . Como tirá-lo de casa se ele mal conseguia ficar sentado? Levamos ele no nosso próprio carro, em três pessoas; uma segurando-o para não cair. Ele ficou apavorado, mas valeu o sacrifício. Além da aplicação da toxina botulínica nós fomos orientados a procurar profissionais para a reabilitação com especialização, em neurologia. Ele só passou por pessoas especiais, com vontade de tratá-lo e com determinação. Meu marido o levava três vezes por semana; chovia, fazia calor, e nada do meu pai desistir. Ele estava em plena recuperação! Recuperou seu peso, já identificava as pessoas. Ficava em pé com alguém ajudando-o, e assim deu seus primeiros passos. Em casa meu marido o fazia caminhar conforme as orientações da fisioterapeuta e ele já deixava a cadeira de rodas de lado dentro de casa. Ele estava se ajudando. Quando o tirávamos da cama já conseguia ficar sentado apoiando no lado, apesar de sempre jogar o peso do seu corpo para o lado afetado. Depois de alguns dias ele começou a mexer a perna, que até então não mexia nada. Começamos a chorar! Uma coisa tão simples, mas com tanta importância pra nós naquele momento… A partir de então só foi melhorando; as dores no ombro, que eram intensas, desapareceram. Após três meses, novamente foi internado para a cranioplastia. Estávamos com medo da cirurgia, os riscos de rejeição, infecção, hemorragia e ele consciente e sabendo de todos os riscos. Foi tudo bem, graças a Deus! Ficou só alguns dias hospitalizado e ganhou alta. Mas ele não lembra de absolutamente nada, não lembra das hospitalizações. Parece que o trauma o fez esquecer.
Nós nos revezávamos à noite: eu, meu marido, meu filho, meus irmãos, minha mãe, uma tia que veio para ajudar e mais uma cunhada. Ele não dormia à noite. Tirava alguns cochilos e falando sempre coisas sem sentido, jogava a coberta para fora da cama. Tínhamos que colocar luvas para que não coçasse a cabeça que tinha pontos. Como era uma pessoa forte, arrancava tudo. Assim foi, mais de um mês esse plantão. Logo achamos melhor ficar só nós de casa; então éramos eu, meu marido, meu filho, meus irmãos e minha mãe que enfrentamos mais alguns meses de plantão noturno. Isso porque ele tomava medicação para dormir. Mas não tinha jeito, já estávamos ficando malucos! Sem dormir ninguém consegue ficar bem, o que para ele também era muito ruim. Teve uma noite que minha mãe não acreditou que ele havia conseguido ferrar no sono, e ela apagou também. De repente ela sai do quarto gritando! Quando chego ao quarto aonde ele estava, a fronha e o lençol eram só sangue, pois ele havia arrancado todos os curativos que tinha, inclusive um ponto da cabeça. Ele dizia assim: “Colocaram vários preguinhos na minha cabeça e estou tirando!”. No momento respiramos fundo e ligamos para o hospital. Fomos atendidos pela Unimed Lar, que em seguida vieram nos socorrer. Demorou um bom tempo para fechar aquele ponto. Corria o risco de ter que voltar para o hospital. Mas, felizmente, tudo deu certo, pois cicatrizou.
Passou um tempo e ele começou a ter consciência da gravidade da situação. Aí veio a fase da revolta, pois ele não aceitava. Um homem como ele estar nesta situação? Tudo que fosse fazer tinha que chamar alguém. Veio a depressão, e muita ansiedade. Foram várias sessões de atendimento psicológico com a Dra. Fabíola, o que foi bem bom para todos em casa, para que conseguíssemos entender o que se passava e ajudá-lo. Sempre que fica bravo com alguma situação, temos que mudar o assunto, falar qualquer outra coisa, não ficar questionando-o. Descobrimos que tinha medo do escuro pois nos chamava a cada minuto com medo de morrer e de ninguém estar perto para salvá-lo. Depois de um tempo você vai aprendendo que não se pode contar nada antecipado: o dia que vai ter consulta médica, se vai receber visitas. A maneira que encontramos é dizer que é sempre amanhã, porque caso conte, ele fica perguntando sempre se esta na hora de sair; aí não dorme e não relaxa. Não e fácil! Ele perdeu a memória recente. Acaba de comer e não lembra. Do passado lembra-se de tudo, do que acabou de acontecer, nada. Outra coisa importante que aprendemos foi que cada vez que ele fica mais confuso, falando coisas sem sentido, agitado, delirando, pode se preparar que aí que vem infecção, normalmente urinaria.
Não esquecendo que agora aquele homem que cuidava de tudo para todos, especialmente de minha mãe que sempre fez tratamento de saúde, inclusive de uma depressão terrível, agora precisava ser ajudado. E fazer como agora?
Eu deixei meu emprego e passei a me dedicar inteiramente a cuidar do meu pai. Meus irmãos passaram a ajudar, depois de alguns meses de muita conversa e discussão. Cada final de semana um é responsável, todos entrando na roda, pois nestas horas falta mão de obra. Seu neto virou enfermeiro.
Mudamos tudo em uma casa. A alimentação é com pouco sal, mas ele, é claro, sempre reclamando, pois gostava de comida bastante salgada, bastante molho, carne gorda. Mas todos acabamos nos acostumando. Ficou com várias manias. Uma delas é um pano na mão, porque diz que sempre está gripado. Toda hora pede um copo com água. Está sempre queixando-se de frio! Pode estar fazendo o maior calor, mas ele está com frio. A mão, se não estiver com a tala, ele deixa enrolada por baixo da blusa. E a cada cinco minutos fica chamando, pois não lembra que já chamou. E assim vai o dia todo…
A terapeuta ocupacional foi de extrema importância. Primeiro para aliviar as dores que sentia no braço, pois pesava (ele usou uma tipoia). Depois foi feito uma tala, tirando suas medidas. É uma peça que não fica sem, ele mesmo pede para colocar.
O que ajudou foi elaborar rotinas na casa. Tudo mais ou menos tem horário, caso contrário não funciona. Hora de levantar, hora do café, almoço, dormir, banho (com ele sempre se queixando) e nós inventando estratégias para ele aceitar. Como é uma pessoa conhecida, recebe muita visita de parentes, amigos, vizinhos e apoio de um grupo da igreja.
Hoje podemos dizer que o pior já passou, não nos apavoramos por qualquer situação. Para tudo temos que pensar como agir. Ao sair decidimos se vamos levá-lo ou deixá-lo, e sempre temos que nos organizar para alguém estar com ele. Ele não vive se não estiver outra pessoa ao seu lado.
Fica um bom período fora da cama, se alimenta sozinho se deixarmos seu prato pronto com os alimentos cortados, melhorou sua postura na cadeira de rodas, facilitando na hora do banho e quando precisamos sair de carro. Aprendeu a nos ajudar nas trocas de fralda e de roupa, não se queixa de dor. Entendemos tudo o que fala. Seu mau humor melhorou. Já dorme a noite toda.
Nos finais de semana a família sai para passear com ele, pois ele sempre gostou de sair, de festa, conversar, contar suas histórias. O mais importante para ele é se sentir amado, e não um peso na vida de seus filhos. Sabemos com toda a certeza que ele faria tudo igual, ou melhor, para ajudar quem precisasse.
Continua com as aplicações de toxina botulínica nos membros comprometidos, o que auxilia na movimentação passiva e posicionamentos.
Patricia da Silva de Oliveira, filha.