O tratamento de portadores de deficiência física pelo Sistema Único de Saúde (SUS) avança, em São Paulo, com a criação da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, que terá 17 centros de atendimento
Por Júlio Zanella

O Brasil tem cerca de 20 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental – vítimas de acidentes graves, envolvendo traumatismo craniano ou amputação de membros, ou eventos cardiovasculares como o acidente vascular cerebral (AVC), que compromete as funções cerebrais e locomotoras. O atendimento especializado, fundamental para a autonomia, a melhoria da qualidade de vida e, até mesmo, o retorno ao trabalho dessas pessoas, tem sido, tradicionalmente, deixado para as instituições filantrópicas, que não conseguem atender à demanda. A iniciativa de construção de uma rede pública de assistência à reabilitação do deficiente físico no Estado de São Paulo, já em implantação, pretende reduzir o tamanho desse problema. Se for bemsucedida, a iniciativa poderá servir de modelo para a criação de outros centros do tipo no resto do país. A Rede de Reabilitação Lucy Montoro, como foi denominada, terá a capacidade de atender cerca de 100 mil pessoas, inicialmente, entre tetraplégicos, paraplégicos, amputados e vítimas de AVC. Em São Paulo, dois milhões de indivíduos são portadores de deficiência física. Com a criação da rede, eles terão acesso, ainda neste ano, às facilidades de centros especializados nesse tipo de atendimento em 14 cidades do estado, informa a secretária estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Linamara Rizzo Battistella, uma das responsáveis por essa iniciativa (ver mapa com a localização à página 33). “A criação da Rede Lucy Montoro não aumenta a oferta de leitos, apenas, mas deve melhorar a qualidade do atendimento”, enfatiza a secretária. “Nosso objetivo é associar a reabilitação das pessoas com a inclusão social”, explica. “Quando devidamente reabilitada e incluída, a pessoa portadora de deficiência deixa de receber auxílio previdenciário e passa a contribuir para a produção e a geração da riqueza do país.”

O acesso à tecnologia digital é um dos meios que a secretária Linamara deve usar nesse processo de reabilitação com inclusão. Para tanto, ela acaba de assinar um convênio com a Microsoft do Brasil que prevê o fornecimento sem custo de notebooks aos pacientes que moram afastados dos centros para auxiliar no tratamento a distância. “Os computadores funcionarão como uma espécie de consultório virtual”, esclarece a secretária. Segundo ela, os pacientes mais necessitados e que moram longe dos centros de reabilitação, ao receber as máquinas, serão orientados sobre o tratamento por meio de vídeos educativos e de palestra virtual dos profissionais do serviço de atendimento da rede.

Reabilitação com inclusão

O computador é uma ferramenta cada vez mais presente na recuperação e na socialização dos portadores de deficiência física. Ele permite a pessoas com capacidade muito reduzida de mobilidade, como as tetraplégicas, entrar em contato

com o mundo exterior por meio de gestos faciais ou movimentos de cabeça. É esse o recurso incorporado no pacote de programas que a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) passou a usar em suas unidades no fim do ano passado, depois de firmar uma parceria com a empresa de tecnologia da informação de

origem espanhola Indra, que forneceu o software. Baseado em algoritmos de visão artificial desenvolvidos para a área de robótica móvel, o aplicativo facilita o acesso à comunicação virtual sem exigir do usuário grande conhecimento de informática.

Basta ter um computador com webcam instalada para usar o headmouse, como o recurso tecnológico foi batizado.

A câmera serve para ler o movimento da cabeça e os gestos faciais do usuário. O primeiro executa a função de “arrastar” do mouse, enquanto os gestos faciais simulam o ato de “clicar”. Com ambos, o portador de deficiência grave consegue comandar o cursor e executar as funções de digitação e busca que são típicas da linguagem informatizada. “O aplicativo incorpora recursos para facilitar a escrita,

como a predição de palavras digitadas, memorizadas pelo computador, que diminuem em 40% a necessidade de digitação e melhoram as taxas de acerto”, diz Joaquín Diaz, diretor da Indra no Brasil. Os programas podem ser baixados do site

www.robotica.uld.cat.

Sonho de um médico

A AACD é uma instituição privada, sem fins lucrativos, que nasceu do sonho de um médico. O doutor Renato da Costa Bomfi m queria criar no Brasil um centro de reabilitação que tivesse a mesma qualidade dos centros que conhecia no exterior para tratar crianças e adolescentes defi cientes e reinseri-los na sociedade, conta a história da AACD. O médico conseguiu reunir um grupo de idealistas e concretizar seu projeto no ano de 1950, quando a primeira sede da AACD foi inaugurada. Hoje, a

entidade é especializada na reabilitação de crianças, adolescentes e jovens adultos portadores de deficiência física e atende cerca de 5 mil pacientes por dia, em nove unidades espalhadas pelo Brasil. “Por ano, chegamos a atender em torno de 42 mil

pacientes”, informa o médico Marcelo Ares, gerente de Reabilitação da AACD de São Paulo. Essa capacidade de assistência é recente. No fim da década de 1990, um paciente chegava a esperar mais de dez anos para fazer uma cirurgia de coluna na

AACD. “Hoje, essa espera não chega a seis meses”, diz o médico.

Se o atendimento de urgência dos hospitais fosse melhorado, a AACD poderia reduzir ainda mais esse tempo de espera simplesmente por falta de demanda. O trauma é, hoje, a maior causa de morte de pessoas com menos de 40 anos e consome 50% dos gastos com os serviços de saúde pública no Brasil. A falta de um sistema mais ágil de assistência emergencial, por conta do despreparo dos profissionais, contribui para o aumento do número de defi cientes físicos no país, afirma o chefe do Serviço

de Trauma do Hospital Albert Einstein e do Hospital das Clínicas de São Paulo, Milton Steinman. “A demora de alguns minutos na assistência a um traumatizado pode determinar a gravidade das sequelas, como a invalidez permanente ou mesmo a sobrevivência da vítima”, diz Steinman, que também é coordenador de pesquisas na Universidade de São Paulo (USP) sobre qualidade em cirurgia de urgência e identifi cação de óbitos por traumas evitáveis na capital paulista.

Trauma esquecido

Steinman critica o modelo universal do Serviço de Atendimento Móvel de Emergência, o Samu, quando este não leva em conta as particularidades

de cada cidade, como, por exemplo, a dificuldade de locomoção, o trânsito e as enchentes. Outra falha relacionada por ele é a distribuição dos pacientes,

que muitas vezes acabam sendo levados para um hospital distante de onde ocorreu o acidente. Para o especialista, a estrutura de atendimento deveria ser descentralizada e funcionar por distritos, como ocorre em países como Estados Unidos e Israel. A formação dos profissionais que trabalham no atendimento emergencial é o terceiro ponto fraco do sistema, para Steinman. Os próprios

cursos médicos não possuem uma disciplina de trauma e os serviços de pronto atendimento são uma alternativa de trabalho para iniciantes da medicina. “Você gostaria que um familiar seu, vítima de um acidente, recebesse o primeiro atendimento de um iniciante na medicina ou de um especialista?”, ele questiona, acrescentando que o paciente traumatizado deveria ser atendido por uma equipe multidisciplinar que incluísse neurocirurgião, um ortopedista, um cirurgião vascular, um anestesista, um endoscopista e um cirurgião plástico e torácico.

Mundo ideal

No primeiro hospital da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, que foi inaugurado em outubro do ano passado em São Paulo, esse mundo ideal de recursos e acesso a especialistas é, por enquanto, a exceção que confirma a regra. Instalado no

bairro do Morumbi, em um prédio luxuoso, de 11 andares, com 80 apartamentos, 20 consultórios e um andar inteiro destinado a diagnóstico, o centro possui infraestrutura para realizar 12 mil atendimentos pelo Sistema Único de Saúde

(SUS) ao mês.

O governo investiu 62 milhões de reais no empreendimento, dos quais 12 milhões na compra de equipamentos sofisticados, como o teletermógrafo, que detecta, por meio da captação dos raios infravermelhos emitidos pelo corpo, os pontos de dor que não aparecem em outros exames. O aparelho ajuda o médico a localizar as regiões em que a dor é gerada. Estimulador magnético transcraniano, bicicleta ergométrica especial e aparelhos de ginástica específicos para a terapia de reabilitação como o de equoterapia, que simula a movimentação rítmica de um cavalo, também estão à disposição dos pacientes do SUS.

Fonte: Revista Pesquisa Medica